Os Contos de Fadas como Recurso Terapêutico
Era uma vez…, este refrão ressoa em todos nós um sentimento de nostalgia da infância, em que nossos pais contavam os mesmos contos infantis. Sentimos o mesmo medo por João e Maria, que se perderam na floresta e foram trancados pela bruxa. Felizes são as crianças que tiveram o privilégio de dormir com essas histórias cuja origem remonta ao início dos tempos. Como elas foram capazes de sobreviver a todas as guerras e revoluções? Por que elas ainda fascinam hoje jovens e velhos? O psicanalista Chouvier Bernard (2018), no seu livro “Le Pouvoir des contes” (O poder dos contos), explica que “O conto é a transfiguração dos eventos trágicos que aconteceram no passado e que ressoam com traumas enterrados no fundo de nós”. Os contos falam de medos e de crenças muito antigas que são transmitidas ao longo dos séculos, primeiro oralmente, depois por escrito a partir do século XVII com a invenção da imprensa. Um dos primeiros a olhar mais de perto as virtudes terapêuticas dos contos de fadas foi o psicanalista Bruno Bettelheim (1903-1990).
Em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, publicado em 1976, ele decifrou o significado simbólico dessas histórias aparentemente tão simples. Para Bettelheim, o conto ajuda a criança a ver melhor suas emoções. Ele chama a atenção para as dificuldades ao longo do desenvolvimento e a relação com os contos: O ciúme entre irmãos e a procura de identidade (Cachinhos Dourados e os Três Ursos, Cinderela), os perigos confrontados por uma menina pré-adolescente (Chapeuzinho Vermelho) e o medo do abandono enfrentado pela criança (João e Maria) ….
A identificação com a criança é feita nos personagens que encontramos em cada conto (o lobo, a madrasta, a bruxa…) e nas situações que falam com as crianças (medo, perigo, ciúmes, fazer escolhas…). Bettelheim (1976) argumenta que que contos de fadas são importantes para o conhecimento do ser humano. No dia a dia, todos, adultos ou crianças, passam por problemas interiores e através dos contos de fadas, pode-se alcançar a solução para as dificuldades enfrentadas, auxiliando assim no desenvolvimento do indivíduo. O caçador matar o lobo traz de volta a vida da avó e salva Chapeuzinho Vermelho. O porquinho derruba o lobo em uma panela fervendo, a fada transforma a roupa velha de Cinderela em um lindo vestido de baile…. O conto, portanto, tem uma função suavizante. Não só permite a criança verbalizar seus medos, mas também traz a possibilidade de vencer as forças do mal.
O conto prepara as crianças para crescer e exerce uma função de alerta. A Bela Adormecida ilustra, por exemplo, a passagem da infância à adolescência. O psicanalista traça um paralelo com o aparecimento da primeira menstruação na menina, geralmente precedida por um período de cansaço e reflexão sobre si mesma. Para Bettelheim, essa história ajuda que a criança entenda a necessidade de passar por este período de descanso que irá prepará-la para a afirmação de uma nova identidade adolescente. Outros contos evocam essa mesma passagem desde a infância até a adolescência, situações que podem ilustrar os medos da criança (medo de se perder na floresta com medo de sair da infância, medo de enfrentar violência ou esquisitices do mundo, drogas…). Finalmente, Bettelheim também aponta para o lado moralizante dos contos. Em “Os Três Porquinhos”, apenas a casa de tijolos do terceiro porquinho resiste a ataques do lobo. Para Bettelheim, essa história é sobre o princípio do prazer e o princípio da realidade, da importância de trabalhar na vida e não levar as coisas com leveza.
Os contos de fadas transformam sensações cruas, fragmentadas, confusas, o que o psicanalista Wilfred Bion (1897-1979) chama de elementos beta, em pensamentos elaborados (imagens, figuras), os elementos alfa. É essa transformação que abre a possibilidade de a criança colocar em palavras seus medos e desejos e manter à distância afetos excessivamente intrusivos. O que torna o conto tão atraente para criança pequena é o seu lado mágico.
Conto Terapêutico e Conto Pedagógico
Na cidade de Bordeaux, na França o psiquiatra infantil e psicanalista Pierre Lafforgue utiliza os contos de fadas para tratar crianças psicóticas, autistas e para ajudar crianças com dificuldades no amadurecimento.
Ele realiza oficina em hospitais da região de Bordeaux com no máximo 6 crianças supervisionadas por um contador de histórias, dois cuidadores e às vezes um observador que faz anotações da sessão terapêutica.
A sessão sempre começa com um ritual (uma música, um fantoche dizendo olá,). Em seguida, chega a hora de contar histórias em um espaço simbolicamente limitado (por cortinas ou cadeiras por exemplo). Depois de ouvir o conto, as crianças têm a oportunidade de brincar novamente, cada uma escolhendo um papel para atuar, incluindo os adultos. Em seguida os cuidadores oferecem um tempo de desenho em que todos podem fazer livremente associações com a história que acabaram de ouvir. Este tempo também é a oportunidade para uma discussão em grupo sobre os sentimentos de cada um. O conto termina com outro ritual (música com rimas, exemplo no Brasil: “o sapo não lava o pé, não lava porque não quer”). Depois que as crianças saem, a equipe (psicólogo e assistente terapêutico) se encontra para discussão clínica. A sessão dura 60 minutos.
O criador das oficinas de contos terapêuticos diz que é importante respeitar os dois tempos, o tempo de preparação da encenação e tempo de desenho na oficina de contação de histórias. Brincar permite que a criança se identifique com um papel, repetindo o agressor, ou o herói, ou outro personagem. Através da brincadeira e do desenho, ela pode associar emoções ao que acabou de ouvir: o medo do lobo, o medo de ser abandonado… Ela pode fazer vínculos com o que vive em casa ou na escola.
Para cativar a criança, o contador de histórias deve viver no conto. A criança deve sentir que o adulto também passou por lá. Então, ele deve insistir nos momentos-chave, como a partida de Chapeuzinho Vermelho para a floresta que marca a separação. Ele apontará alguns detalhes da história que permitirão que as crianças façam associações livres.
Alguns pais acham que contos com conteúdo muito violento podem criar medos na criança. Pierre Lafforgue (2002) explica que, em nossa sociedade atual, as crianças são atacadas em todos os lugares: na escola, enquanto assistem a propagandas ou notícias, enquanto jogam videogames… Elas devem ter a oportunidade de se defender. É graças a essas histórias imaginárias que ela encontrará soluções para suportar seus medos.
Em uma entrevista na revista Le Cercle Psy (2018), Lafforgue diz que não é o conto em si que tem uma função terapêutica, mas o seu conteúdo, ele está cheio de arcaísmos ligados ao amadurecimento das chamadas sociedades primitivas. Existe uma analogia entre o amadurecimento infantil e o amadurecimento das sociedades; encontramos estruturas de pensamento idênticas para resolver uma situação ou um conflito. Ele distingue o conto terapêutico e o conto pedagógico.
Os contos pedagógicos usam principalmente a estrutura canônica da narrativa. Esta estrutura permite que as crianças redescubram uma lógica de discurso quando querem falar sobre suas emoções. Quanto à oficina terapêutica de conto, além do prazer em contar histórias, os terapeutas fazem associações com as dificuldades pessoais das crianças: suas ansiedades, seu luto ou abandono, etc. Nessa prática terapêutica, ele diferencia crianças neuróticas e psicóticas.
As crianças com uma estrutura neurótica têm menos necessidade de rituais e invariantes para localizar-se no conto. Elas vão se adaptar mais facilmente às mudanças. Se utilizamos na oficina uma versão antiga de Chapeuzinho Vermelho que acaba por sua morte, elas mesmas vão propor uma saída feliz. No entanto, as crianças com uma estrutura psicótica não integraram essa lógica de reparação. Seu mundo interno é confuso e caótico. Graças ao conto, elas vão descobrir essa possibilidade de “reparar” e isso terá um efeito calmante em sua psique.
Lafforgue (2018) revela que, antes, os contos tradicionais fascinavam crianças até 11 anos. Hoje, com os jogos eletrônicos, esse interesse raramente vai além dos 6 anos; para ele o problema do videogame é que ele dá uma satisfação imediata, sem a possibilidade de fazer trocas com o mundo interior. Para crianças que não têm um psicológico sólido com representações básicas, o videogame pode ser algo fascinante que as leva da passagem ao ato (exemplo: atitudes agressivas) e a uma posição de onipotência.
Em relação às novas mídias de hoje e o uso de rede social, ele explica que os pais estão cada vez menos utilizando a narrativa (os contos de fadas) e não têm mais tempo para acomodar as angústias dos filhos. É a construção do mundo interior da criança que sofre. Grande parte das instabilidades das crianças na escola está ligada à falta de internalização dos conflitos que antes eram elaborados por contação de histórias ou cantigas de roda.
A Transmissão Oral em Crise
Para Bernard Chouvier (2018), o conto tem uma função de transmissão entre pais e filhos. Os prazeres, medos e alegrias vivenciados pelos pais durante a sua infância são um mediador que permite o diálogo com seus filhos sobre o que os preocupa e sobre os seus desejos. Hoje em dia, o conto parece ter-se tornado um pouco desatualizado. Os pais usam, cada vez menos, os contos para dialogar com os filhos; em contrapartida, as crianças são mais atraídas por outras histórias mais modernas como: desenhos animados, mangás, jogos eletrônicos, etc). Alguns cientistas veem neles mediadores com funções semelhantes ou como estimuladores cognitivos, mas a grande maioria se recusa a fazê-lo, criticando filmes e videogames por seu caráter muito tangível que deixaria menos espaço para devaneios e associações psíquicas. Seja como for, os contos, infelizmente, parecem estar perdendo seu brilho. No entanto, os medos e conflitos infantis ainda estão lá, mais do que nunca…
REFERÊNCIAS:
Bettelheim, Bruno. Psicanálise dos Contos de Fadas, Paz&Terra,2021
Chouvier, Bernard. Le Pouvoir des contes, Dunod,2018
Chouvier, Bernard. La médiation thérapeutique par les contes, Dunod,2015
Lafforgue, Pierre. Petit Poucet deviendra grand : Soigner avec le conte, Payot,2002
Monzani, Stefano. Pratiques du conte : revue de la littérature. La psychiatrie de l’enfant,Vol. 48,2005.
Olano, Marc. Des Contes de fées au conte thérapeutique.Le Cercle Psy, nº29,2018
*Arthur Prado-Netto, PhD em psicologia pela Université de Paris, Sorbonne, professor da Universidade do Estado da Bahia, Guanambi e Bom Jesus da Lapa.
https://arthurpradonetto.com/about-us/
Fotos: Pexels e Pixabay